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 O Louco é uma seleção de contos em PDF e faz parte do projeto Literatura_Axé - Livros em PDF - Romances, Contos, Crônicas e Teatro.

Preço, a título de colaboração - R$ 15,00

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 Um dos contos de O Louco.  


O Coroa e o Taxista.

 

          Dorival andou até o ponto de táxi. Sentia-se apreensivo por sua momentânea situação financeira. Era fim de mês e restava-lhe na carteira uma única cédula de dez reais. Enquanto se acomodava no banco dianteiro do carro de praça, observou o taxímetro que já cobrava, de saída, um terço do seu numerário.

— Para onde, doutor? — Perguntou-lhe o jovem motorista.

— Leve-me ao Bradesco mais próximo, por favor.

— Tem o da Pituba e o do Iguatemi? As distâncias são relativamente iguais.

— Sendo assim, vamos ao da Pituba. É mais vazio. Minha preocupação é dinheiro. Só disponho de dez reais na carteira e já estourei o limite do cheque especial. Se não depositaram meu salário, estarei em apuros! Destes dez reais, ainda espero que sobre, pelo menos, o do ônibus de volta pra casa caso aconteça o pior.

Explicou, Dorival,  ao taxista, demonstrando sua boa educação. Dorival é um senhor de meia idade, 1,7m, calvo, um tanto atarracado, e portava um tom acinzentado no olhar, mostrando, para um bom observador, seu momentâneo descontentamento financeiro.

— Oito dão. — Pressupôs o valor da corrida o taxista Ponha o cinto, por favor.

Enquanto cumpria a ordem, Dorival tinha fé que o salário estivesse creditado. Lembrou-se que em sua casa, com a despensa quase vazia, a amante e companheira desdobrava-se para preparar uma moqueca de carne com ovos, feita com as sobras do lombo do dia anterior.

— Reconheço o senhor. — Afirmou o jovem motorista.

— Não duvido, ando muito de táxi. Sofro de labirintite, o que entre outros inconvenientes me impede de dirigir.

— O senhor não se chama Dorival?

Dorival acenou afirmativamente com a cabeça e completou:

— Este é meu nome de batismo. Foi uma homenagem que meu pai resolveu prestar ao grande cantor e compositor Dorival Caymmi. Como papai dizia:

— "Caymmi é o único cantor brasileiro que transmite toda a manha do baiano ao cantar...

— Pois é, doutor. Fique o senhor sabendo que se hoje estou livre, devo ao senhor.

— A mim?

— Sim. Ao senhor. Estou notando que o senhor não se lembra de mim.

— Honestamente? Não me lembro. Deve ser a idade, na minha idade a memória vai se esvaindo. Já não sou mais tão bom fisionomista.

— Quando eu contar minha história, tenho certeza, o senhor se lembrará de mim. Meu nome é Antônio Carlos. Também foi uma homenagem que meu pai prestou só que ao Senador ACM, O ― Cabeça Branca‖.

— Seu pai é ―Carlista!?‖

— Não só meu pai. Toda a minha família é eleitora de Antônio Carlos Magalhães. Porém, não era sobre esse assunto que eu queria lhe falar. Quero é lembrar ao doutor de onde é que nós nos conhecemos.

— Tudo bem, Carlos. Sou todo ouvidos.

A frente, um enorme engarrafamento impõe lentidão ao trajeto a ser percorrido. Novamente, Dorival observou o taxímetro que registrava quatro reais e cinqüenta centavos.

— O senhor não mora no condomínio Costa do Atlântico? No STIEP?

— Atualmente não. Morei lá. Mudei-me há alguns meses.

— Isso não vem ao caso. Como estava dizendo, eu tinha ido ao bar que fica dentro do condomínio onde o senhor morava...

— Sei. O bar de Nonato.

— Esse mesmo. O senhor estava sentado do lado de fora. Eu bebia rabo-de-galo junto ao balcão. Naquela época, eu trabalhava como segurança: carro forte, segurança de banco, essas coisas. Eu tinha ido até lá porque estava seguindo minha mulher. Eu suspeitava que ela tivesse ido ao encontro do amante. Então, parei no bar de Nonato para beber umas, tomar coragem pra matar a vadia e ao sacana que estava comendo ela. Foi aí que o senhor notou que eu estava armado, nervoso e bebendo. Então, o senhor puxou assunto e me chamou para tomarmos cerveja. Lembro-me como se fosse hoje. O senhor disse que não valia a pena eu me sujar, ser preso, correr o risco de ser usado como mulher no presídio, só por causa de uma vingança burra... Na hora, o senhor parecia Jesus Cristo falando. Depois, quando eu já estava calmo, o senhor tomou a arma e a entregou ao dono do bar para só me devolver no dia seguinte. O senhor se lembra de mim agora?

Um arrepio subiu pela espinha de Dorival, por um momento ele empalideceu. Instintivamente seus pensamentos se voltaram mais uma vez para o taxímetro, e olhando de relance, disfarçadamente, pôde notar que o marcador registrava cinco reais e cinqüenta centavos.

— Agora me lembrei, Carlos. E fico feliz por ter sido útil. O propósito de se tornar um uxoricida é burrice, é... — Carlos interrompeu o discurso de Dorival.

— Posso lhe fazer uma pergunta muito pessoal, doutor?

— Claro! Pode perguntar.

— O doutor já foi chifrado?

— É uma pergunta pessoal, sem dúvida, e um tanto quanto complexa. Para lhe ser sincero, nunca me preocupei muito com este tipo de assunto. Vejo o adultério por uma ótica muito pessoal... O adultério... Como eu poderia lhe explicar?... O adultério é mais um conceito religioso. Não é algo de maior gravidade. Talvez, a dor que ele causa em quem sofreu a traição, seja uma distorção do ego. Eu como um cínico agnóstico e adepto do hedonismo não dou muita importância...

— Ta falando grego, doutor... Não entendi patavina.

— Grego não. Falo sobre o pensamento de gregos... Vou tentar ser explicito... Para mim é melhor ser um corno feliz do que um punheteiro triste. Entendeu?

— O doutor está de brincadeira, não está? Quer dizer que o doutor além de não acreditar em Deus, ainda por cima, não se importa de ser corno?

— Carlos, como eu já lhe falei, eu sou agnóstico. Quanto ao adultério... Meu pensamento é simples. Por outro lado, é complicado para lhe explicar...

— Tente, doutor. Talvez eu entenda.

— O fato é que o adultério não conseguiria me induzir a sofrimentos maiores. A meu ver, o ciúme é um problema de ego e de conceitos herdados da cultura judaico-cristã. As pessoas sofrem porque foram ensinadas a terem esta reação. Quando isso acontece os homens se imaginam inferiores ao cúmplice escolhido pela parceira para uma aventura sexual. A base desse pecado era garantir que os filhos seriam legítimos. Coisa de sangue. O que eu considero uma bobagem: pai é quem cria, quem dá proteção e amor. O outro fator, já que depois do uso dos anticonceptivos as mulheres só engravidam quando querem, é mais orgulho ferido que eu chamo de ego. Como não afiro meu valor pessoal pela opinião alheia não me atinge. Também não aceito que me atribuam responsabilidade por atos praticados por outra pessoa. Se minha companheira for buscar prazeres sexuais com outros homens é escolha dela, não minha. A ação será dela, não minha. Por força de conseqüência, nenhum argumento poderia me convencer a assumir responsabilidade por qualquer atitude que ela escolha ter. Penso assim. Se ao invés de fazer sexo sua companheira assassinar outra pessoa. Você não se sentiria traído ou menosprezado e ela é quem seria presa ou responsabilizada. Acredito ardentemente que eu sou livre até pra perdoar caso saiba de tais atos. Não me sinto devedor de satisfações a ninguém... Exceto, ao imposto de renda... Fui claro!

— O senhor não me respondeu a pergunta... Interrompeu Carlos, ansioso, por não ter obtido a resposta desejada.

— Certo! Você quer saber se já fui corno? Provavelmente sim. Se não fisicamente, com certeza fui mentalmente. Assim como outras mulheres me atraem, alguns outros homens devem, também, despertar atração nas mulheres. Mas, se já fui de fato chifrado, carnalmente, até então eu não fiquei sabendo. Respondi agora a sua pergunta?

— Respondeu. E é por isso que o doutor acredita ser loucura matar uma adultera. O senhor não sabe a dor, o desespero que dá. É como se alguém lhe tirasse o chão sob os pés... — a voz de Carlos saiu arrastada, tremula, em falsete. Dorival interferiu interrompendo a narrativa do taxista.

— Calma, meu jovem! Mesmo que realmente isso lhe tenha acontecido, é passado. Não vale a pena você ficar remoendo esta dor. Se isso ocorreu, não pode mais ser mudado e é tolice guardar sofrimentos. Perdoe o deslize de sua mulher. Sei que você considera um erro grave, mas todos somos sujeitos a errar. O perdão é uma dádiva para quem perdoa e só nos faz bem.

— Doutor Dorival, se o senhor soubesse o ódio que esta lembrança me provoca. Eu conheci Verônica ainda menina lá no meu interior. Namoramos desde que éramos crianças. Na época, eu tinha doze anos, ela tinha onze. Um ano a menos que eu. Quando fiz dezoito, papai foi pedir a mão dela ao compadre. Casamos na Igreja de papel passado e tudo. Até lua de mel nós tivemos. Foi meu tio quem pagou. Ficamos em Canavieiras por uma semana. Quando voltamos da lua de mel, ela ficou morando na casa de papai, e eu vim para Salvador para trabalhar com meu tio. — Eu dava um duro danado. Todo o dinheiro que ganhava, eu juntava. Centavo por centavo. Eu não bebia, eu não fumava, eu só trabalhava. Eu fazia tudo para economizar. Trabalhei duro, de sol a sol, até que consegui comprar uma casa de alvenaria, lá em Pirajá. Mobiliei a casa toda: armários, cama de casal, geladeira, fogão, televisor a cores, comprei até um DVD pra aquela puta. E fui fiel a ela, doutor! Mesmo quando ela estava morando longe de mim, eu fui fiel...

— Calma! Meu caro. Você está destemperado. Acalme-se — Dorival olhou o taxímetro. Piscava em vermelho: nove reais e cinqüenta centavos.

Carlos, por favor, encoste o carro. O dinheiro que disponho, não vai dar para cobrir o preço da corrida. O restante do trajeto eu faço a pé.

— Não. Nada disso! Fique tranqüilo, doutor! — Como estava lhe contando, depois de tudo pronto, mandei o dinheiro e ela veio para Salvador. Foi o tempo mais feliz de minha vida. Eu ficava rezando pelo final do expediente só para correr pra casa. Vivíamos juntos. Eu só saía com ela e ela só saía comigo. Foi assim até a cachorra da Sueli fazer amizade com minha Verônica. Foi aquela piranha que botou Verônica a perder. Foi depois que Verônica conheceu a tal da Sueli que ela começou a usar saia curta, biquíni enfiado na bunda, e a pintar à cara e a boca...

— Carlos! Isso não significa que ela lhe traiu. Isso faz parte da vaidade feminina. É comum a todas as mulheres.

— Até pode ser, doutor. Mas ela comprou um bocado de calcinhas de renda, e tinha uma delas, com um coração vermelho costurado bem na testa do xibiu. Outra coisa, doutor. Ela passou a raspar os pentelhos... E o pior é que quando ela ficava em casa ou saia comigo, ela só usava os calçolões de algodão, mas quando ia sair sozinha era com as calcinhas de renda que ela saía...

— Será que ela lhe traia mesmo, Carlos? Todo o cuidado é pouco, meu jovem. As aparências às vezes enganam.

— Doutor! Ela mudou... Antes, ela só queria ficar em casa cuidando das nossas coisas. Depois desta tal de Sueli é que ela apareceu com a conversa de trabalhar fora de casa. Foi aquela puta da Sueli que arranjou as malditas faxinas para Verônica fazer. Além do mais, doutor, um amigo me disse que o porteiro do prédio onde ela fazia as faxinas falou pra ele que ela estava de caso com um morador lá do edifício. Lá no condomínio onde o senhor morava.

— Será que esse cara era mesmo seu amigo, Carlos? Ou ele tinha inveja de vocês? Existe muita gente maldosa neste mundo.

— Foi verdade, Dorival! Ela me chifrou mesmo!

— Você perguntou a ela?

— Perguntei. Ela se negou a falar, claro! Ela me contou que só foi ao prédio receber o dinheiro das faxinas. Mas eu sei que ela estava mentindo. Tanto foi que depois que eu saí para trabalhar ela pegou as roupas dela e sumiu. Acho que foi morar com a tal da Sueli... É bem provável que o senhor tenha conhecido ela. O senhor conheceu?

— Dificilmente! Eu não tinha amizades por lá, muito menos com jovens. Foram poucas às vezes em que fui ao Bar de Nonato. Eu freqüento os bares da orla, geralmente os da Pituba ou então vou ao Bambara, no jardim de Alá, que é freqüentado por gente de minha idade.

— Ah! Doutor. Se o senhor tivesse conhecido minha ex-mulher o senhor saberia do que eu estou falando. — O jovem falou com ternura e ódio da ex-mulher — O senhor não iria esquecê-la nunca. Aquela vagabunda era linda. Era não! Ela é MA-RA-VI-LHO-SA! Morena cor de jambo. Os olhos grandes, da cor de caramelo, os cabelos lisos e sedosos com aquele tom de cobre velho. Cor natural. Vai até o rego da bunda. O sorriso é de um branco que magoa as vistas da gente. Um corpo, doutor! Coloca no chinelo qualquer uma daquelas dançarinas da televisão. E como era fogosa na cama... Vige Maria!

— Você tem procurado por ela, Carlos?

— Para quê, Dorival? Para ser visto como corno? Eu sou homem, doutor. E homem que é homem tira sebo do pau e come. — Carlos calou-se por instantes buscando conter as emoções. Seus olhos ficaram avermelhados e deixaram escorrer pequenas lágrimas. Dorival guardou silêncio. Quando Carlos voltou a falar, a voz saiu rouca, arrastada, chorosa.

— Ufa! Naquele dia, doutor, ela só não morreu porque o senhor, em nome de Jesus, me impediu. — Carlos deu uma pausa, respirou fundo e recomeçou a falar — E este favor eu vou lhe dever até que Deus me busque.

— Você se separou legalmente, Carlos?

— Ainda não. Meu tio é que está providenciando a tal da separação. Ele me disse que ela não quer nada de mim. E graças a Deus nós não tivemos filhos para colocarmos no meio.

— É verdade. Em uma separação quem mais sofre são as crianças. Mesmo assim, é melhor se separar do que manter um relacionamento ruim. Você é jovem, tem toda a vida pela frente, e ela, com sorte, pode até encontrar algum outro homem.

— Eu não quero nem pensar nisso, doutor. — falou Carlos com raiva. — Por mim ela fica por aí pulando de pau em pau que nem galinha em puleiro.

Dorival, ao ver que o taxímetro ultrapassou a cifra dos doze reais, exclamou!

— Carlos, este taxímetro está querendo me ferrar! Como você está sabendo, só disponho de míseros dez reais, e se o dinheiro não foi creditado só irei poder lhe pagar oito reais. Ainda bem que estamos chegando. — Em poucos minutos, Carlos estacionava o táxi em frente ao banco. Antes que Dorival exprimisse qualquer pensamento, Carlos foi antecipando:

— Fique calmo! Dorival! Vou esperá-lo aqui o tempo necessário para que o senhor possa resolver o seu problema. Vá tranqüilo. Se o dinheiro estiver depositado, tudo bem. Caso contrário eu levo o senhor de volta e depois acertamos.

O dinheiro fora depositado, porém, estava bloqueado para saque. Dorival retornou ao táxi aborrecido e acabrunhado. Ao chegar, notou que o taxímetro estava desligado. Dorival entrou no carro com ar de derrota e tentou negociar:

— Carlos. Amanhã acertaremos o debito.

— Para onde, Dorival?

— Vou voltar para casa. Fica perto do ponto onde eu lhe apanhei.

— O senhor é Bahia ou Vitória? — Questionou Carlos, mudando o rumo da prosa.

— Bahia...

Carlos e Dorival retornaram conversando sobre o Esporte Clube Bahia, e a sua atual fase na segunda divisão do campeonato brasileiro. Ao chegarem próximo ao edifício onde Dorival morava, ele pediu para parar e propôs uma nova negociação.

— Obrigado, Carlos. Aqui está ótimo. Anote o endereço de meu escritório. Amanhã eu te pago a diferença...

Dorival tentou entregar os dez reais a Carlos. Carlos insistiu na recusa.

— Esqueça, Dorival! Fique com o dinheiro para o senhor tentar amanhã. Até qualquer outro dia.

— Então, muito obrigado, você é um Anjo. Até mais, Carlos.

Ao chegar a seu apartamento. Sua linda morena da cor de jambo, demonstrando ansiedade, perguntou-lhe:

— O dinheiro saiu, amor?

— Foi depositado, mas está bloqueado para saque. Só posso retirá-lo amanhã. Passei o maior sufoco, porém, seu Deus me enviou um Anjo.

— E desde quando você acredita em Deus ou em Anjo, amor?

— Desde hoje! Querida... desde hoje! — A propósito. À noite quero que você use aquela calcinha de renda.

— Qual delas?

— Aquela que tem um coração vermelho...

 

SSA—BA - 1995

 

Literatura: contos, crônicas e poesias.


 A Escolha ou O Desembestado 

Um texto de Ariovaldo Matos. (Foi adaptado pelo autor para uma peça de Teatro encenada pela Companhia Baihana de Comédias - Setembro de 1977).  Parte do Livro em PDF - Teatro que será editado ainda em 2023. 

Para adquirir os Livros em PDF de Ariovaldo Matos ou Ricardo Matos 

entre em contato pelo e-mail: jrmtos2000@gmail.com  


O Desembestado

 

Naquele frio 21 de junho, a sra. Zulnara, piedosa e convicta irmã de Maria, contava ao esposo um episódio da existência temporal de São Luis de Gonzaga e ele, já habituado as eventuais crises religiosas de sua companheira, sentia certo prazer em escutar a narrativa que a voz tímida ia desenvolvendo:

— ... e então — disse ela — um terrível surto de peste assolou a cidade de Roma. São Luiz nem padre era, ainda, mas pediu permissão aos superiores do Seminário e saiu a cuidar dos enfermos, a muitos confortando. Aquela moléstia, porém era transmissível e ele também ficou doente. Padeceu dias e dias e, afinal, mártir da caridade, morreu em 1591 com apenas 23 anos mas já estava madurinho para o céu.

— Virou Santo? — perguntou Albano, com algum interesse e uma pontinha de dúvida.

— Sim.

Albano tinha pensado num argumento qualquer, anti-santificador, em que prevaleciam drogas químicas como sulfonas e coisas aparentadas, mas a verdade é que não chegou a concluí-lo mentalmente. Mesmo que tivesse oportunidade de ir além do esboço não o apresentaria a Zulnara. Um dos seus cuidados, com a esposa, e já os tinha desde os meses do noivado, consistia em poupá-la de conflitos íntimos que ele julgava desnecessários. Em todo o caso, o certo é que o argumento anti-glorificador, de elaboração mental apenas iniciada, desapareceu numa fração de segundos, quando a campainha soou, avisando-o sobre estranha presença no apartamento e foi até a porta, para abri-la. Abriu-a sem maior curiosidade, supondo que uma vizinha qualquer perguntaria por Zulnara. No entanto, e de modo surpreendente, quem entrou no pequeno living, aos gritos, foi o sr. Tancredo Batista D'Almeida.

— Albano, irmão, estou rico!
— Tancredo, amigo velho, eu...
— Estou rico. Albano, mais do que rico!

— Tancredo, eu... Mas é uma surpresa, você aqui!
— Rico, Albano, rico! Na verdade, irmão, estou mesmo milionário e

numa hora dessas não podia deixar de pensar em você. Albano, dá cá um abração. Sob evidente excitação alcoólica, Tancredo insistia nas exclamações ruidosas ("estou rico, irmão, estou milionário!") e quando o amigo, sem ter conseguido vencer a surpresa, perguntou se ele tinha sido premiado na Loteria Federal — e afinal era um sábado, dia de extração — o visitante mostrou agressivo desdém ante aquela lamentável prova de ignorância: — Loteria, Albano? Eu ganhar na Loteria? Está me desconhecendo, irmão? Eu sempre não lhe disse, Albano, que Loteria é jogo de idiota?
Albano permaneceu em silêncio e Tancredo, penalizado, ofereceu o que considerava uma explicação suficiente:

— Fiquei rico, irmão, porque desembestei na vida e quero que você desembeste também.

Zulnara aproximou-se, silente, incapaz de compreender o que se está passando. Tancredo, ao vê-la, delicada e cheia de inquietação, verificou rapidamente que o amigo permanecera fiel à sua preferência pelas mulheres-tipo-caniço, de muita altura, pouca carne e muito osso, indagando:

— É a sua mulher?

Albano bateu a cabeça, ainda zonzo com a tempestade verbal do amigo.

Tancredo, muito simples, pediu:

— Dá cá um abração, Madame.

Zulnara estacou, precavida. Tancredo ponderou:

— Não tema, Madame. Mulher de Albano é mesmo que minha irmã e se ele vai desembestar, a senhora desembestará também. Madame antes de mais nada, fique a senhora sabendo que Albano sempre foi a verdura do meu cozido. Vamos, dá cá esse abração amigo!

Zulnara manteve-se firme, recusando-se ao abração pedido. Mulher de recato, criada no temor de Deus e no amor aos Santos, nunca imaginaria que um tipo visivelmente embriagado tivesse a audácia de lhe invadir o apartamento com aqueles modos grosseiros e todo aquele vozerio. Mostrava-se, assim, mais do que apreensivo. Estava atônita. Temia, sobretudo, que seu valente esposo reagisse à brutalidade com que o visitante continuava a abraçá-lo, sacudindo-o provocativamente. Albano limitava-se a rir, mas qualquer pessoa poderia constatar que ele parecia a pique de fartar-se daqueles excessos.

— Madame — explicou Tancredo — a senhora desculpe a ousadia, vá desculpando esses meus modos e tenha dó do meu palavreado de tabaréu da Bahia, mas há 10 anos, Madame, que eu comemoro a morte daquela besta quadrada que foi Tancredo Batista D'Almeida, a esse Batista ainda fica aí porque mamãe é viva. A senhora acredite, Madame, que isso de mudar de nome, quando o dito é feio e dá peso, é coisa deveras importante. Eu tive um colega que se chamava Praxedes não sei de que, e Albano se lembra dele. Era uma besta, Madame. Nunca soube distinguir os legisladores de Atenas dos Sparta, se lembra Albano? Bom, isso não vem ao caso, o definitivo, Madame, é que era uma besta mas se mandou para os Estados Unidos, aprendeu inglês, virou Pritchard não sei o que mais e ficou rico, mas enquanto Praxedes... A senhora entendeu?

— O senhor entre, convidou Zulnara, com ar resignado, cansada de olhar e escutar, de pé, aquele intruso.

— Qual a graça da senhora?

— Meu nome?

— Zulnara, Tancredo — disse Albano.

— Bonito nome, Madame, bonito nome. Um nome desses não se muda. Mas a senhora já pensou que despropósito seria a senhora tivesse sido batizada como Ocridalina? ]

Zulnara não lhe deu resposta. Tancredo prosseguiu:

— Vamos deixar de lado essa minha teoria sobre nomes e azar. O importante é que aqui estou, em São Paulo, faço minha comemoração e trago para vocês um convite piramidal. Posso falar livremente Albano?

Albano, meio sem jeito, disse que sim, batendo a cabeça, enquanto Zulnara, impaciente e os pés doendo, mantinha-se calada.

— Bom — disse Tancredo — antes de tudo, Albano, me consiga um uísque ou coisa assim, puro.

O funcionário deslocou-se para a copa e não demorou com o copo centimetrado. Entre for man e for pig estava a dose mas Tancredo não atendeu para o detalhe significativo. O olhar frio de Zulmara começava a inquietá-lo e ele resolveu reagir:
— De saída — disse — conto a vocês que antes de ficar rico eu mofei anos num emprego mixuruca, despachando rumas de processos dos outros, ouvindo resmungos e queixas, espiando e cheirando a miséria dos pobres. Todos os dias, Madame, cinco e seis horas por dia, era aquela miséria fedorenta que é a miséria dos pobres. Todos os dias, Madame, cinco e seis horas por dia, era aquela miséria desfilando na minha cara, diante de minha carteira. Mas, aos sábados, longe daquele fedor, eu me vingava tomando uns porres geniais. Albano, irmão, se eu ainda falo neste assunto, eu que tantas vezes já lhe chateei com ele, é porque fedor miserável continua em mim, dele não me limpei todo... Você tem um bom uísque, Albano. Haisg?

— Johnny Walker — Albano mentiu.

— É um bom uísque.

Tancredo emborcou a segunda e última golada sob o olhar ainda frio de Zulnara:

— Digo à senhora, Madame, que a coisa foi passando, passando, sempre aquele fedor e sempre aqueles porres, mas um dia, a senhora preste atenção, um dia que Deus fez sozinho, sem assistência do Diabo, me deu o estalo salvador e eu me sacudi: mandei o emprego de barnabé às favas e meti-me de cara nos negócios. Claro que o fedor continuou e continuará os porres geniais, mas eu fui indo, a princípio ganhando de modo aritmético, depois de modo geométrico, e o resultado é maravilhoso, Madame, a geometria é o fino. De sorte que aqui estou, nesta São Paulo imensa completamente rico e desembestado, e tão rico, Madame, que até já comprei no cemitério granfino da Bahia, a minha última morada e botei um bonito anjo de bronze. Vocês porém, não se preocupem que eu não sou de morrer cedo e isto de túmulo, é puro esnobismo. Eu olho é para frente. Porque o que me sobra do passado, além de Mamãe Batista, que é uma santa, é aquele fedor da miséria dos outros, uma coisa que reconheço idiota e que me força, às vezes, a me exceder um pouco nas bebidas, e então vou ficando falador, mas isso os amigos compreendem...

Zulnara não mudou o olhar nem Albano abandonou sua posição. Ouviam-no, somente.

—... Você não compreende, Albano? — indagou, acrescentando logo a seguir:
Tudo isso, Madame, é só prefácio com meu palavreado de Caititú da Bahia. O importante, Albano, é que quero você trabalhando comigo — e pago o tripulo do que você ganha aqui. Se ajudo todo o mundo que me merece, por que não devo também ajudar você, irmão?

Agora estavam andando, os três, quase no fundo do living e Zulnara, fazendo-se menos tímida e apreensiva, conseguiu dizer:

— Sente-se um pouco, o senhor... — havia algum calor no olhar e Tancredo o percebeu. — Nada de sentar, Madame, a senhora que se sente, se acalme e me ouça.
Albano, irmão, você me defere outro uísque?

Tancredo alongou a vista pelas paredes do living, notou os quadros em grossas molduras douradas, antigas gravuras de sentido religioso, e forçou a memória:

— Sabe, Madame, eu fui muito católico como vejo que a senhora é. Ia muito à igreja e gostava sinceramente do padre Ovídio. Meu velho é que não tolerava isso. Era positivista, Madame, positivista dos feios, um fanático. Se lembra de meu pai, Albano? Bom uísque esse seu, Albano. Parece Haigs... Eu falava de meu velho. Pois bem, Madame, a senhora imagine que ele arranjou com uns parentes de Lisboa um grande retrato de Augusto Comte, enforcou o bicho num passe-partout preto e desenhou, de baixo, dois versos de Camões que, na minha opinião, deles só um homem é deveras merecedor: Fleming, o descobridor da penicilina. Porque, Madame, só mesmo quem teve gonorréia sabe, Madame... Se lembra, Albano?

Albano estava extremamente inquieto, remexendo-se no soumier e Zulnara, sem compreender o que se passava, perguntou:

— Está sentindo alguma coisa, meu bem?

Tancredo preocupou-se também com o amigo:

— Você tem estado doente, Albano?

Suspirando, o funcionário disse:

— Não foi nada. Uma dorzinha boba, nos olhos...

— Se lembra da frase, Albano?

— Não.

— Eram dois versos de Camões, Madame, lindo versos, assim: Peitada foste...
... Não, não era assim. Um momento. Assim: “Do sol peitada foste, cruel morte para o livrar de quem o escurecia”. Não é lindo, Madame? Com isto, como está evidentíssimo, meu Pai queria dizer que o sol, invejando Augusto Comte, contratou a Morte para levar o invejado para a cidade de pés juntos. Mas quem merece isto é o Fleming, porque...

— Outro uísque, Tancredo? — interveio Albano, nervoso.

— Sim, irmão, aceito.

Albano orientou a conversa:

— Você falava que era católico e então...

— Era mesmo. Meu santo preferido, Madame, era São Domingos Sávio e eu tinha um retratinho dele que o Padre Ovídio me sapecou nas páginas do catecismo. Era um bonito menino e o Padre Ovídio olhava e reolhava o retratinho, com um gosto danado, e ficava repetindo: “não era lindo? não era lindo?”. E depois, Madame, me olhava de jeito esquisito e dizia para mim: “você também é lindo”.

Albano reentra no living com o uísque.

Se lembra do Padre Ovídio, Albano? Eu contava a d. Zulnara que ele nos ensinou o catecismo e que gostava de São Domingos Sávio. E por falaz nisso, será mesmo verdade o que diziam do Padre Ovídio com aquele garoto...
Zulnara estava distante, pensando em algo, e Albano, de novo vermelho até a ponta das orelhas, interrompeu o amigo:

— Queres gelo?

— Não.

— Gelo é bom, Tancredo.

— Eu gosto puro, Albano, mas vamos deixar de lado o Padre Ovídio. A senhora fique sabendo, Madame, que eu e seu marido éramos mesmo que irmãos. Éramos e somos. “Amigos que nem irmãos”, diziam os invejosos e havia um, chamado Nelson Colarinho, sujeito mau caráter, que um dia chegou a insinuar que eu bancava a galinha para seu marido, se lembra Albano? Tive de lascar uma pedrada genial na cabeça do mau caráter porque amizades como a nossa, naqueles tempos, não eram bem compreendidas. A senhora imagine, Madame, que o filho de uma prima minha cortou os pulsos e quase morreu, esvaindo-se em sangue, porque o pai, um idiota, pensou que ele bancava galinha com outro colega, e o menino de raiva, fez a coisa, quero dizer, cortou os pulsos, mas não morreu.

Zulnara não tinha apreendido nada daquela história. Continuava distante, pensava na beleza de São Domingos Sávio e lhe recordava o ensinamento básico: “antes morrer do que pecar”.

— Não é trágico, Madame? — perguntou Tancredo.

— O quê?

— A historinha que contei, a do filho de minha prima...

— Sim — disse Zulnara — penso que sim. Morreu?

— Não, Madame. Eu disse, quase morreu.

Zulnara virou-se para Albano, olhou-o queixosa. Disse:

— Nós não temos, meu bem, nenhum retrato de São Domingos Sávio...

— Eu mando — disse Tancredo. Na Bahia tem uns lindos. Eu mando. Terei prazer em procurar os melhores e mandá-los, a senhora não perde por esperar. Mas o melhor é aquilo que eu já disse: vamos todos para a Bahia e a senhora não pense, Madame, que eu faço o convite só de impulso, só porque, hoje, estou meio alegre. Não, Madame, eu já venho morando neste assunto há muitos meses. Só faltava a oportunidade de estar em São Paulo e fazer o convite, como agora faço e reafirmo. Para mim é questão fechada. Porque seu marido é o meu amigão do peito. Nascemos na mesma rua, chutamos a mesma bola, xingamentos de Albano eram xingamentos meus, estivemos na mesma igreja, no mesmo colégio e — se a Senhora permite a franqueza — estivemos a nos desvirginar no mesmo “castelo”.

— Tancredo!! — Albano quase gritou.

— ... no “castelo”, Madame — Tancredo viu que não podia mais parar — no “castelo” de umas pobres raparigas, no Açouguinho... A senhora se assusta? Bobagem, Madame. Será que a senhora pensa que seu marido casou donzelo? Ou imaginava?

Albano suava frio e a pergunta saiu maquinal:

— Outro uísque, Tancredo?

— Não, não quero beber mais.

Compreendeu ter ido longe na narrativa crua de suas reminiscências mas o desembestamento verbal era, agora, incontido, apesar do modo seco e do olhar gélido de Zulnara, seus lábios apertados, como se estivesse quase a chorar, e, ainda, o nervosismo de Albano.

— Não desejei escandalizá-la, Madame — disse. É que quando estou entre amigos e começo a falar , as verdades vão saindo sem cuidado, porque aos amigos não se engana. Espero que a senhora me compreenda...

Zulnara respirou fundo, olhou Albano, compreendeu-lhe a inquietação. Ele não apoiava aquela imoralidade, aquelas memórias do pecado, e quis ajudá-lo. Disse a Tancredo:

— O senhor é amigo do meu marido...

— De infância...

— ... e minha obrigação é considerá-lo bem-vindo em meu lar. O senhor, esteja à vontade. Se desejar mais um uísque é só pedir.

— Não, Madame. Agora não. Mas tenho certeza que com o tempo a Senhora me compreenderá. Com os outros, Madame, eu sou seco, duro, áspero, meço as palavras, planejo meus gestos. E sempre, Madame, em torno de mim estão “outros”, dentro de mim está aquele fedor de miséria dos pobres. Não é que eu tenha nascido assim, Madame, e Albano sabe disso. Nosso dinheiro era um só, uma só era nossa alegria, a senhora fique sabendo, e nossa tristeza, Madame, porque ainda criança tínhamos tristeza, era também dividida.  A senhora é devota de São Domingos Sávio, ótimo, Madame, e eu sabia de cor os seus quatros Mandamentos, mas a vida me forçou a esquecê-los, Madame, e eu desembestei . Seu marido suportou tudo, mas eu não pude... Madame, eu não pude... Aquele fedor de miséria me entrou pelo corpo todo e um dia eu bolei: ou saio desse atoleiro ou morro nele, apodrecido também. Pisavam em mim e eu resolvi, de estalo, pisar nos outros, para subir, Madame, e subi. Albano, irmão, eu aceito outro uísque... Com licença Madame — pediu.

— À vontade — ele respondeu e de novo havia calor nas palavras.

Tancredo começou a andar pelo living. Tinha-se, da janela do canto, uma ampla visão da cidade com sua fisionomia noturna.

— Por favor, Madame, chegue aqui — solicitou. Espie a cidade. É uma selva, Madame. Li isto num livro e foi há poucos meses. Uma selva com suas leis e seus animais, Madame. Para sobreviver é preciso ser um caçador impiedoso, um bom caçador, o olho sempre na mira, o dedo no gatilho pronto para disparar no momento exato.

Havia medo nos olhos de Zulnara. Diziam-lhe, naquele momento, o que ela nunca antes ouvira, no lar ou no colégio, e, mais tarde, quando se enamorara de Albano. O medo era, a um só tempo, da cidade, de Tancredo, e, um pouco, do passado.

Tancredo recebeu o uísque, agitou-se por hábito, bebendo de duas goladas sucessivas. Disse logo depois:

— No começo, Madame, e seu marido ainda não sabe disso, meti-me a vender livros, desses bonitos, caros, lindas coleções de livros, e me cutucou uma idéia. Sente-se Madame, por favor. Pensei comigo: essa coleção só as compram aqueles que gostam de livros aos metros e essa gente mora no interior, são os coronéis. Qual o erro das editoras, das livrarias? Simples: esperavam que os fregueses ao invés de ir buscá-los onde estivessem. E fui. Viajei dezenas de municípios, sedes, distritos, aldeias, o inferno e quando voltei trazia um mundão de encomendas. Comecei assim. Fui crescendo, vendendo outras coisas, ações, papelórios, terrenos, casas, o diabo. Logo no início encontrei dificuldades. Os compradores queriam pechinchas e um deles, certo dia, perguntou-me na tampa:

— “Passa rio na porta?”

— Rio?

— “Sim, eu queria uma casinha de campo mas em terreno onde passe rio”.
Ora Madame, naqueles terrenos não havia rio, nem riacho, nada. Era terra bruta, seca, árvores chupadas e mais nada. De modo que voltei de mãos abanando para o escritório. O subgerente, que já morreu, que Deus o tenha, não me desanimou. Disse;

— “Tancredo, você é uma besta. Porque terreno em que passe rio na porta só quem providencia é Nosso Senhor Jesus Cristo. Logo Tancredo, você é uma besta”.
Eu me espinhei, Madame, mas não lamentei coisíssima nenhuma. De novo fui ver o cliente na base da ofensiva. Disse a ele:

— “Então o senhor quer um terreno baratinho em que haja rio na porta da casa que o senhor vai construir, não é isso?”

O homem abriu os olhos, Albano, disse que sim, porque seu sonho era aquele: uma casinha barata, em terreno barato, com rio passando perto, de tal jeito que ele pudesse plantar suas betúnias , e então eu disse a ele:

— “Pois descobri, cavalheiro, um lote assim. É este aqui, espie”.

Ele espiou e quis saber:

— “Cadê o rio?”.

— Está aqui — disse eu — É pequeno mas é rio e o senhor não o vê porque a nossa Loteadora só vende terreno com rio na porta aos fregueses que merecem especial consideração, como é o seu caso”.

— O homem comprou, Albano?

— Comprou Madame, eu ganhei minha comissão, ninguém reclamou nada, até porque o sujeito estava mesmo era a querer ser enganado e não fiz mais do que atender à vontade daquele distinto suplicante. A senhora ri? Bom, ria à vontade, Madame, mas a vida é assim mesmo. Mas isso não é nada. O importante, o definitivo, é que assim desembestado eu fui crescendo. Com os tempos eu reuni um capitalzinho de quitanda e matutei comigo: eu tenho um capital de quitanda mas se for negociar nesta base terei sempre de vender uns nabos, uns maxixes, uns jilós e isto não me interessa. E decidi, naquele instante, partir com meu capital de quitanda como se fosse capital de Sociedade Anônima, quer dizer, violentamente, com todos os riscos. Eu estava desembestado, Madame. Em torno de mim só havia “os outros”, os inimigos, as vítimas. Zarpei para minha própria empresa, meu próprio negócio, e comecei de baixo, mas rápido, muito rápido, pisando ao invés de ser pisado, escapando dos inimigos maiores, que ainda não podia enfrentar. Bom, já falei demais. O resultado é que, hoje, estou rico. Tenho várias empresas, Madame, várias... Posso pagar o triplo a Albano. Ou mais do que o tripulo. Então, vamos todos para a Bahia. É minha proposta, irmão.

— Um dia, Tancredo... Albano começou a dizer . Zulnara pensava. Havia tentação naquele homem e naquela proposta. Pensava...

— Nada de um dia a mais, um dia a menos — disse Tancredo. Vamos logo amanhã. Vocês são só um casal, sem filhos... Vamos amanhã, só para vocês espiarem o ambiente. Eu preciso de Albano, Madame, preciso de um irmão... Se não gostarem trago-os de volta. Iremos os três de carro, pela estrada nova. Será uma viagem inesquecível e no caminho irei mostrando os que são bestas e os que não são bestas — e estes, Madame, graças a Deus ou por culpa de Deus, não sei, não quero saber, estes são poucos. É fácil identificá-los, Madame. Cria-se um estado de espírito... Madame quer ver? Bom, ponho-me aqui, ao lado de seu excelentíssimo marido e peço à Senhora: Olhe-nos! E então, Madame, percebeu?

— O senhor pisca mais...

Não é isso, Madame. Piscar mais, no caso, é conseqüência. O essencial, Madame, é a chama, a Senhora repare, é a chama do caçador bem sucedido, Madame!
Zulnara riu, já não temia Albano, seu passado, Tancredo, sua tentação, e o mundo em volta.

— Na verdade — disse — os olhos de Albano são calmos, os do senhor, ao contrário...

— É a chama, Madame, é a chama. Quem primeiro... Albano, irmão, me arranje outro uísque... Eu dizia, Madame, quem primeiro me descobriu essa chama nos olhos foi Mamãe Batista, um dia, há anos, Conto a Senhora como aconteceu. Mamãe morava num velho casarão, um sobrado de vigas podres, a telha-vã, única herança de meu pai, que além daquilo só deixou mesmo muitos livros; mamãe morava ali, eu dizia, e certa vez falei com ela assim: “Mamãe, arrume seus panos de bunda”... não, não disse assim, essa expressão eu aprendi recentemente... Eu disse “Mamãe arrume seus petelecos, essa velharia toda, que amanhã a senhora sai desse chiqueiro e vai morar num apartamento meu, novo, um belo apartamento, Mamãe Batista”. É assim que eu chamo ela, Mamãe Batista, então, Madame, ela disse: “não vou não, Tancredo. Não vou morar em apartamento nenhum. Não moro em casa que não tenha lá dentro”. É verdade, falando sinceramente, os apartamentos não tem lá dentro. Só os dos ricos. Por exemplo: só o meu, que sou solteiro, tenho lá cinco quartos, os quais as vezes encho de mulher, mas mulheres gordas, Albano, mulheres de muita carne onde eu possa me afundar... Isso é detalhe. Mamãe disse aquilo e a coisa me doeu porque ainda não podia atendê-la. Estava desembestado já, mas não me achava rico ainda. Parei um pouco, pensei, repensei, e Mamãe, me olhando, se assustou. Me disse: “seus olhos, Tancredo, estão vermelhos. Parece que vão pegar fogo”. Exatamente, Madame, exatamente. Porque naquele preciso instante, eu bolava uma jogada, um golpe, e disse: “Mamãe Batista, a senhora não perde por esperar um pouco. Eu vou lhe dar uma casa que tem lá dentro”. Ela teve confiança, acreditou, porque me espiou nos olhos, viu a chama...
Albano pediu:

Sente-se um pouco, descanse.

— Você não decide? — ele perguntou.

Zulnara reparou no esposo, que não perdera a tranquilidade senão quando Tancredo se excedera em certas reminiscências, esperando sua palavra final, e sentia que a tentação nela ainda persistia. Um vago desejo de aventura, algo que a inquietava.

— Um dia, talvez, Tancredo, eu e Zulnara iremos à Bahia... — disse Albano.

— Vou-me embora — disse Tancredo. Creio que falei demais e me sinto meio zonzo. Tanto uísque...

Agora estava cansado. Pediu:

— Façam de conta que não estive aqui, não disse tantas besteiras — e adeus, minha senhora.

Zulnara apertou-lhe as mãos olhando-o com alguma amizade. Albano levou-o à porta, abraçou-o. Sumiu. Desde então, e religiosamente, todo dia 21 de junho, o casal Albano-Zulnara Azevedo Maia recebe de algum lugar do Brasil, quase sempre de Salvador, uma reprodução, em 18 x 24, do delicado retratinho de São Domingos Sávio e as finas molduras são de puro ouro. O ofertante, naturalmente, é o próspero milionário sr. Tancredo Batista e ele não sabe que, na realidade, o Padroeiro do dia, aquele dia, é São Luís de Gonzaga que morreu de lepra, em Roma, no ano de 1591, madurinho para tornar-se Santo. Albano, que é apenas um funcionário de salário razoável, vende o ouro da moldura e guarda a gravura, com o que concorda sua esposa, D. Zulnara, piedosa e convicta irmã de Maria.

( Dezembro, 1963)”


Especulação Imobiliária em Salvador - Bahia

  A especulação imobiliária em Salvador-Bahia está comprando tudo, até os políticos. O custo disso p população será desastroso. Ano q vem te...