A Dura Lei dos Homens - De Ariovaldo Matos


 “C’est lá dure loi des hommes

Se gander intact malgré

Los guerres et la misere

Malgré lês dangers de mort.”

P. Eluard

 

Jantara bem, o carro saíra da oficina em boas condições, nenhum mal entendido com os amigos apenas fora algo desagradável a leviandade daquele jovem na livraria. Ele insistira em condenar Rilke sem qualquer motivo sério, limitando-se a citar alguns trechos de Cartas a um Jovem Poeta. Contudo, bem analisada as coisas, aquilo era desculpável. O rapazinho mal iniciara suas atividades como crítico – obtendo, aqui e ali, alguns êxitos – mas já se acreditava um pequeno gênio de província, graças aos elogios fáceis que ia recebendo. Não discutira, claro. Ouvira-o, a princípio com desdém, depois com tolerância . O silêncio geral fora, sem dúvida, a melhor resposta. Afinal, um incidente sem importância, destituído de força suficiente para intranqüilizá-lo.

Dosou o cálice de cointreau, ajeitou-se no divã e ligou a radiola. Ouvia uma seleção de Ives Montand quando os policiais invadiram a sala e o grandalhão gritou:

-- Teje preso!

Eram sete ou oito, todos de cara amarrada , cheios de ódio e medo. O de olhos azuis parecia arrependido de tudo aquilo. Repetia:

-- Vamos com calma, vamos com calma...

Erguendo-se do sommier, perguntou assustado:

-- Que é isso?

O chefe trajava roupa clara, de tropical amarronzado. Sorria vitorioso,sob os óculos Ray-ban:

-- O senhor está preso. Nem adianta discutir. É ordem...

-- Se vista logo! – gritou o grandalhão.

Quis argumentar, gaguejando um pouco:

-- Mas, isso é ilegal. Uma arbitrariedade... Eu...

O chefe arrematou:

-- Isso de lei é bobagem. Se vista. A ordem é prender, a gente vem e prende. Só isso. Vamos, se vista. E o senhor não vai querer brigar...

Havia, agora, uma ameaça, e ele considerou inútil discutir. Resolveu obedecer, ainda um pouco trêmulo. Vizinhos chegaram-se à porta do apartamento. Todos exibiam inquietação e receio. Olharam-no em silêncio e em cada olhar era possível ler a pergunta inocente:

-- Não haverá engano?

-- Não, não havia engano algum. Absurdo que pudesse parecer, os policiais o consideravam um criminoso, terrível criminoso; homem tranqüilo na aparência, muito simpático até, mas de objetivos sinistros, capaz de inverter, perverter e subverter os fundamentos da família cristã. Os visinhos, naturalmente, faziam outro juízo. Há anos o conheciam, celibatário inveterado, amante da boa música, não raro às voltas com livros que estudava madrugada adentro. E sempre silencioso, cordato, produzindo bons conselhos e opiniões moderadas. As mocinhas do edifício acalentavam sonhos a seu respeito. Algumas, mais ousadas, visitavam-no sob os mais diferentes pretextos, e se não obtinham o desejado, prosseguiam alimentando esperanças. Marilda, a loura do terceiro andar, confessava, as colegas e amigas, que estava definitivamente apaixonada, e dona Marta, quando brigava com o marido, cansava-se de apontá-lo como exemplo...  

Mas, agora, os visitantes eram outros. E ele próprio estava surpreso, sem os compreender, com exatidão, os motivos porque o consideravam perigoso a ponto de lhe invadirem o apartamento, violentando sua tranqüilidade, espezinhando direitos, os hábitos assegurados. É verdade que não conseguia conter-se diante de certas evidências, e, no jornal, de quando em quando, assinava artigos de natureza política, artigos suficientemente cáusticos para agravar os padecimentos dispépticos do excelentíssimo senhor governador. Quase nada mais, senão pronunciamentos através de manifestos, uma e outra reuniões em entidades que a polícia fichara como altamente subversivas, as opiniões que, em conversa, expendia, sempre despreocupado de conveniências e oportunidades. Tivessem motivos ou não, o certo era que o consideravam perigoso. E o resultado ali estava: a polícia a invadir-lhe o apartamento, desfazendo, com extraordinária habilidade, as arrumações das estantes, arranhando discos, rebuscando volumes, separando alguns que eram transferidos para camioneta parada na porta do edifício.

Vestia a camisa esporte quando o policial grandalhão perguntou:

-- Tem arma?

-- Não – afirmou e continuou a vestir-se, fingindo uma calma que não tinha, apreensivo com o coração a prosseguir naquela inquietante ritmação anormal. Quando, finalmente, pôs o paletó xadrez, considerou necessário informar:

-- Podemos ir.

Queria acabar com tudo aquilo, preocupado não só com os policiais, mas, igualmente, com a bisbilhotice dos vizinhos a espiá-los em meio àquele espanto covarde.

Repetiu:

-- Estou pronto. Podemos ir.

Um dos policiais exclamou:

-- É metido a valente!

O outro aduziu:

-- Isso a gente acaba com uma “sessão”.

Um terceiro teria repetido a ameaça se o chefe, já impaciente, não ordenasse:

-- Levem ele!

Levaram-no e não foram gentis. Preferiram empurrá-lo escada abaixo, e na rua não o convidaram a ocupar lugar em uma das camionetas estacionadas. Não. Atiraram-no pela porta traseira, como se fosse uma coisa qualquer.

Não aconteceu, entretanto, o que imaginara ao descer a escada: o espancamento ao longo do caminho, o clássico espancamento no veículo. Ao contrário: um policial baixinho, aquele que recomendara calma, ofereceu-lhe um cigarro, que recusou, mentindo com dignidade escrupulosa:

-- Deixei de fumar.

Preocupava-se em saber quando começaria a “sessão”, a hora das torturas. Desde que o consideravam perigoso, teriam de supor que muito sabia e muito haveria de informar. Aquilo era aterrador. Mesmo o pouco que sabia – alguns nomes, alguns endereços – revestia-se de importância para a polícia. Se falasse, portanto, seria uma pústula, um traidor. Recordou-se, então, de Aloísio. Quando ele saíra da cadeia, massacrado, fora vê-lo e nada dissera do seu heroísmo. Apenas, para que Aloísio entendesse, para que o elogio ficasse entre os dois, repetira Eluard:

-- C’est la dure loi des hommes...

E guardara, na memória, a resposta magnífica de Aloísio, aquele belo sorriso do amigo, sorriso que o rosto desfigurado compôs sem dificuldade.

E agora? Seria também suficientemente leal para manter-se intacto? Passaria pela prova suprema com honra e dignidade, suportando tudo, sem trair? E se não suportasse? E se, sob o fogo das torturas, das unhas arrancadas, dos testículos esmagados, das picadas elétricas pelo corpo, abrisse os lábios, dissesse nomes e endereços, traísse?

Agora não importavam os exemplos. Havia, de fato o desejo de não trair, mas não se tratava apenas de desejar. Era preciso mais. Era indispensável vencer um inimigo que antes nunca enfrentara, um inimigo que se continha em tudo – nos gestos, nas palavras, nos cassetetes, na sirene na camioneta, na noite, em toda parte: o medo. O medo de ser forçado a trair. Forçado pela dor. Era preciso ser forte. Como Aloísio fora.

O policial baixinho interrompeu-lhe os pensamentos:

-- Estamos pertos. Acho melhor o senhor fumar...

Consegui sorri:

-- Parece uma homenagem ao condenado. A última homenagem...

O policial respondeu:

-- Talvez seja. Não por mim. Mas eles vão espancar o senhor. Vão querer que o senhor fale, denuncie os outros. Eu sei. Eu conheço. Talvez o senhor não agüente...

Sim, talvez morresse. Para o policial aquilo era o fim, mas para ele – numa fração de segundos o percebeu – a morte temida transformou-se numa esperança. Sim havia o aneurisma! Se não fosse suficientemente forte para tudo suportar, se falhasse a honra e a dignidade, o aneurisma responderia ao último apelo, fazendo explodir o coração. Assim a morte viria, a doce morte dos que não podem mais viver com honra. Era uma esperança porque, ao examiná-lo, o médico fora quase peremptório: um aneurisma.

-- Tudo indica – dissera o médico.

A camioneta corria com as sirenes abertas. Tinham pressa. Talvez também tivessem medo. Isso, porém, não lhe dizia respeito, não era o decisivo. Mais rápido ou mais lento, pouco importava. Que aumentassem a velocidade, que gritassem mais alto, com suas sirenes, não lhe competia opinar. Importante era ponderar sobre se o médico diagnosticara bem. E não fizera os exames pedidos; apenas marcara data com o técnico em eletrocardiograma, não o procurando depois. Evocou, então, uma a uma, as palavras do médico:

-- 90% de probabilidade para um aneurisma. Mas somente os exames poderão...

Por que não fizera os exames?

O velho hábito de adiar as coisas, a velha mania de esquecer providências importantes para perder horas e horas na Livraria, conversando, lendo trechos de livros. E como se isso não fosse o suficiente, as longas caminhadas pelas avenidas marítimas ou pelas ladeiras seculares, aqueles monólogos tolos, os exercícios de memória que, agora, nenhuma importância poderiam ter. Ora, não seria libertado se repetisse, para os policiais, os versos de “Pouvoir Tout Dire” ou o desafio contido no título de Lord Sparkenbroke, ainda que o dissesse no inglês mais correto. O importante... Não, não, o médico não teria cometido erro. Todos os sintomas estavam à vista; ansiava quando subia escadas, dormia sem tranqüilidade, era infenso a um maior esforço físico. Acalmou-se então, e calmo estava, quase tranqüilo, quando o baixote ordenou que descesse da camioneta. Obedeceu, rapidamente. Na rua, empurraram-no em direção ao prédio sinistro. Quase tropeçou no primeiro degrau da escada, mas o baixote, sempre solícito com aquele olhos azuis tão nervosos, o ajudou a não cair. Por que aquilo? Por que, enquanto todos batiam e empurravam, o baixote se fazia gentil? Saberia ele da doença do coração?

Olhou-o com alguma gratidão e o policial compreendeu o gesto. Mas não sorriu, nada demonstrou. Disse apenas no final da escada:

-- Entre naquela sala, descanse...

Entrou. Dois policiais ficaram sentados, defronte, de sobreaviso. Às vezes, carregando nos gestos como se fossem atores sem naturalidade, olhavam-no com ódio e xingavam. Assim ficaram umas duas horas e ele evitava encará-los. Tudo era muito estranho, e muito cansativo também. Os policiais pouco falavam, os olhares eram sempre , os xingamentos sempre os mesmos. Por fim o baixote reapareceu, falando:

-- Comprei alguns cigarros.

-- Eu deixei...

-- Mentira!

Admitiu:

-- De fato...

O policial entregou-lhe os cigarros e uma caixa de fósforo. Partiu, expressando desejo provavelmente sincero.

-- Boa sorte.

Preocupou-se com aquele homem diferente dos demais. Talvez sofresse intimamente, vendo tudo, com tudo compactuando, mas fugindo às maiores responsabilidades. Ou o inverso: talvez fosse um cínico, um cínico de estomago delicado. Sorriu sem perceber e um dos policiais, na porta, exclamou:

-- O descarado ainda ri!

Ajeitou-se na cadeira, cerrando os lábios. Era preciso não sorrir, limitando-se a imobilidade, esperando. Fumou e pensou em coisas esquisitas. Uma multidão de coisas: Aloísio no Hospital, Julius Fuchik recriminando os pais porque o tinham feito forte como um cavalo... Sem saber porque, recordou-se daquele 14 de julho em Paris, a moça corcunda, o estudante chinês que a recusara para dançar no baile da Rua Souflot, o dialogo com o motorista belga, a canção de Constantine – L’oiseau Bleu. E sempre o médico, o médico que repetira:

-- Um aneurisma.

Antes, ainda no apartamento, havia inquietações. Agora, naquela sala, a certeza da morte era uma esperança. Além de tudo, a demora. Lá fora era noite. Mesmo ali havia silêncio. Talvez tivesse recuado. Afinal, não era desconhecido como Aloísio. Pareceu-lhe que, de repente, aqueles homens, aquela atmosfera opressiva, se dissolveriam, e de novo se encontraria no living do apartamento, ouvindo algo menos descritivo que Ives Montand cantando “La Rue Lepic”. Imaginação. A realidade era o silêncio, a sala mal iluminada, a presença dos policiais, o aneurisma, as mãos frias, o suor pelo corpo inteiro, duas formiguinhas que, agitadas pareciam procurar o impossível, nas frestas do chão de tacos.

Com a madrugada vieram buscá-lo. Três cavalões, em manga de camisa, revólveres à mostra. O moreno mastigava chicletes. Conduziram-no para uma sala pouco mais ampla, forçando-o a que se sentasse numa cadeira colocada no centro do recinto, sem outros móveis além do birro aonde um policial macilento preparava-se para manejar a máquina de escrever. Alguém perguntou:

-- Dormiu bem?

Todos sorriram. Nada respondeu. Continuou olhando o chão, agora de cimento, sem formiguinhas nervosas:

Da porta veio uma voz autoritária:

-- Nome todo, residência, data de nascimento, nome dos pais, estado civil, profissão. Rápido.

Respondeu.

O homem da porta chegou-se mais perto. Perguntou:

-- Casado ou solteiro?

-- Solteiro.

-- Vejamos... Reconhece ser o autor do artigo que agora lhe é exibido e que tem o título “Os crimes e o culpado”?

-- Reconheço.

O coração ia reagindo com mais rapidez. Começou a sentir gosto de sangue na boca, mas verificou ao passar o lenço, que era impressão. Fez esforço para controlar-se. Não podia tremer. Era proibido tremer, dar o menor sinal de fraqueza. Impossível, contudo, dominar o coração...

-- Reconhece que nesse artigo subversivo incrimina o governador do Estado como responsável por supostos espancamentos sofridos pelo indivíduo Ivan Serpa, também conhecido como Aloísio Cunha Serpa?

-- Sim

Percebia que os acontecimentos se encaminhavam para o fim, o instante em que o coração atenderia ao apelo decisivo, explodindo para salvá-lo do opróbrio. Assim iria acontecer, fatalmente, e então os algozes, preparados para massacrá-lo, ansioso por fazê-lo, não teriam o gosto da vingança, não poderiam dar vazão, aos seus baixos instintos – seviciariam um cadáver, um mártir, um herói também, uma bandeira que contribuiria para exterminá-los, a eles e a tudo que representavam. Previsão exata porque ao perguntarem se estava disposto  a assinar a retratação pública, gritou um “não” altissonante, sinal para o avanço dos espectadores e o inicio do espancamento. A princípio, pontapés de todos os lados. Socos que pareciam produzidos pelo ar, cusparadas e gritos. Quando o abandonaram, em um canto, sangrava na cabeça e na boca. Dor terrível nas costas. Ergueu-se, gemendo, e ouviu a mesma pergunta:

-- Retrata-se?

-- Monstros!

Violenta bofetada foi desferida. De novo caiu. Um pontapé atingiu-lhe e pescoço, mas permitiram que se agarrando nas saliências da parede fria, novamente ficasse de pé. O chefe ordenou:

-- Sente-se.

Arrastou-se até a cadeira, cuspindo sangue, língua, e dentes partidos. Houve silêncio de alguns segundos. Alguém sugeriu:

-- Deixem que ele pense um pouco. Talvez o imbecil compreenda que não adianta bancar o herói. Afinal, não queremos muito. Apenas que desminta uma infâmia... Como é, pensou?

-- Vou morrer e vocês pagarão. – ameaçou com a voz enrolada.

-- Morrer de que, bobo? Isso é só o começo...

-- Ele parece um menininho, esse descarado cínico.

-- Assina ou não assina o troço?

-- Não!

Agora sim uma saraivada de socos, pontapés, bofetadas por todos os lados, os policiais o transformaram numa peteca, atirando-o no chão para chutá-lo. As dores corriam o corpo inteiro, o sangue saía, da boca, aos borbotões, mas não era o coração que respondia. Em certos momentos sentiu, no peito, uma dor imensa, mas logo era transferida para os rins – eram os pontapés habilmente desferidos. Depois, pouco depois, perdeu a consciência, e mais tarde, quando voltou a si era noite. Havia em torno, vozes e vultos que não distinguia. Talvez fosse a morte – imaginou – e voltou a adormecer. Horas depois, novo despertar, mas agora, sabia que retornara à vida, e quando identificou os amigos, os companheiros, o deputado Macedo, velho amigo de seu pai, Aloísio que tinha fisionomia carregada, perguntou:

-- O aneurisma?

Ninguém compreendeu. Aloísio aproximou-se mais e disse baixinho algo que ele não entendeu. O amigo de novo falou, talvez com lágrimas nos olhos:

-- A dura lei dos homens...

-- Ele tentou sorrir, compreendendo. Inquiriu:

-- Habeas-corpus?

-- Nada. Abandonaram você numa viela e dizem que quando o deixaram livre, você estava inteiro. São inocentes... Nós é que teríamos promovido o espancamento, porque você teria traído. Uns crápulas! Difícil imaginar...

-- Sei...

-- O médico aproximou-se. Quis saber:

-- Meu coração, doutor.

-- Ah! No coração, nada. Seu coração é ótimo. Resistir a tanto...

-- Coração de cavalo.

O médico sorriu com a frase de Aloísio e esclareceu:

-- Fizemos radiografias no corpo inteiro, buscando todas as fraturas...

-- Nenhum aneurisma, doutor?

-- Em você?

-- Sim – disse quase sem fôlego.

-- Não. Descanse. Nada de aneurisma. Se você tivesse um já estaria morto.

Ficou feliz, gemeu novamente, ao mover-se, e disse a Aloísio:

-- Intacto, irmão, intacto.

-- Como intacto? Você está todo quebrado, velho...

-- Não, não falo do corpo, Falo da consciência, da honra...

O deputado Macedo olhou-o penalizado, sem compreender que aquele ritus, na face, era um sorriso.

 

Maio de 57.         

   

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